Inocentes de Belford Roxo
“A Meia-Noite dos tambores silenciosos”
Carnaval 2022

Presidente: Reginaldo Gomes
Presidente de Honra: Rodrigo Gomes
Carnavalesco: Lucas Milato

J U S T I F I C A T I V A

A Noite dos Tambores Silenciosos, organizada anualmente no carnaval do Recife, é um rito de preservação da tradição afro-brasileira e um grito urgente pela liberdade de credo. Em pleno século XXI, o povo preto ainda encontra dificuldades de dissolver a ordem hegemônica. Vivemos em uma sociedade racista por estrutura, que esconde os reais obstáculos da resistência. Através da louvação aos Eguns, realizada no Pátio do Terço, a partir da meia-noite, os fiéis podem se conectar com o legado de luta de seus antepassados, sabendo que carregam no sangue e no Orí a bravura daqueles que jamais se curvaram ao opressor. Em determinado momento da cerimônia, um casal de pombas brancas, símbolo que carregamos no pavilhão de nossa escola, é lançado no ar, representando o clamor por dias melhores. O G.R.E.S. Inocentes de Belford Roxo desfila no intuito de amplificar esse pedido. O samba estende a bandeira em reverência ao maracatu. Somos múltiplos retalhos de um mesmo estandarte, cultura afro em movimento. A palavra que vem de nós tem peso e fundamento. Sob o comando de nossos mestres, o som ensurdecedor dos tambores irá ressoar.

S I N O P S E

A noite há de ser infinda. Sob os misteriosos olhos da lua, a corte negra banha o asfalto do São José com suas cores. O céu, com inveja das estrelas que cintilam em cortejo, também ganha o tom da brincadeira. É Recife pulsante! Festejo vivo, baque virado de nação. A alegria, faceira, nos avisa: “Cheguei, meu povo. Cheguei pra vadiar!”. É segunda-feira de carnaval, e nada “promete pra faltar”. De um punhado de versos, se faz uma prece. De um mar de preces, uma loa. As energias ali presentes já conhecem o destino de cada rufada do tambor e os sorrisos vibrantes dos batuqueiros não escondem a ansiedade pelo grande momento. É que, no pátio do terço, o tempo transcende os ponteiros do relógio. Lá, as horas não passam simplesmente feito cortejo, constituem parte de uma roda viva, que arrisca voltas sobre si mesma.

“O baque do maracatu estanca no ar
Das lâmpadas, apaga-se a luz branca no ar
Na sombra donde somem cor, somos um”
(Lenine, Carlos Rennó)

Quando cessam os tambores, resta o silêncio das almas dos fiéis. Mesmo insonoras, as vozes de milhares ecoam em um mesmo clamor. Apagam-se as luzes frias do pátio, para que o fogo das tochas acenda a candeia dos espíritos sagrados.

Ebó para os ancestrais. Sem o brilho das lâmpadas, os olhos, inundados de fé, enxergam a luz por trás da penumbra. Os estandartes continuam de pé, sob a vigilância de seus reis e rainhas. No véu da meia-noite, são todos filhos de uma mesma nação, regidos pelo som que se principia das mãos dos ogãns. Toque que corta o ar. Eparrei! Grito que rompe o elo entre o orun-aiyê.

“Oyá igbalé ê lari ô!
Oyá igbalé!” (Domínio público)

Mãe dos nove céus, deusa dos mortos, sopro que liga os dois mundos, mostre a direção. Tome todos os espaços. Receba essa oferenda de um povo que sempre buscou por respostas, leve a quem resiste no aiyê a energia dos que já se foram e lutaram por esses caminhos. Quando se vai o corpo, fica o axé: força que une presente e passado, deixando um legado vivo que se ressignifica no grito de cada irmão. Entre as histórias que se encontram ao rés do chão, não existem mais barreiras físicas ou temporais. O som que vibra do tambor é conversa entre corpo e orixá, transe que eleva as preces em comunhão. Pombas brancas atravessam o horizonte levando ao Orun o pedido de paz para o grande senhor: Agô, pai Oxalá! Para que seus filhos sonhem com dias melhores, existem histórias que precisam ser contadas, almas que merecem ser louvadas.

” No chão, na vibração de nossas mãos, somos um Irmãos na evocação aos eguns” (Lenine, Carlos Rennó)

A ordem de paz se dá em nome de um povo que foi arrancado de sua raiz, e separado em massas sem rosto e nome. O azul do Atlântico carregou sonhos aprisionados, que aportaram na dura realidade da América portuguesa. Em terra firme, o golpe duro da chibata estalava o grito da feroz desobediência. Eles jamais aceitaram os destinos que os senhores lhes deram. Dos rótulos forjados pelo colonizador, os escravizados organizaram uma nova identidade. Nação de quem sentia a mesma dor, nação que compartilhava o ardor da luta.

“Eu vim de Luanda para cá
Com gonguê e atabaque para dançar.
Que barulho é esse ioiô

É nação de preto nagô”
(Capiba, Nação Nagô)

O temor do senhor era ver preto organizado. No seio das irmandades, tinha festa africana em pleno altar. Em dia de Nossa Senhora do Rosário, postura veloz: o corpo era livre, só obedecia ao som que estancava do couro do tambor. Batuque para o rei do Congo, escolhido pelos seus súditos, que coroavam um símbolo de representação. As vestes do colonizador tentavam cobrir a epiderme negra, mas não conseguiam esconder o orgulho de quem reencontrava, em novo solo, a mesma raiz. Esperança depositada nas contas do rosário, alento no louvor aos deuses africanos.

“Temos rei, temos rainha, Temos nosso diretor.
Chama a dama do paço,
Que o maracatu já chegou.”
(Toada de domínio público)

Quebradas as correntes, restaram as amarras sociais. Da lágrima de quem deu a vida por libertação, talhou-se o estandarte a ser empunhado pelas ruas do Recife. Em nome da herança, maracatu se fazia nação. Enquanto a alta sociedade se esforçava em esboçar os gestos do modo de vida europeu, o toque dos gonguês gritava que a verdadeira realeza era preta. Barulho incômodo aos ouvidos da maquiada classe embranquecida: arruaça, vadiagem, “coisas de negros incivilizados”. A repressão das autoridades tinha cor e endereço, mas a fé do povo de santo era organismo vivo. O temor da elite era ver preto organizado.

” A boneca é de cera
É de cera e madeira” (Toada de domínio público)

Os primeiros versos do Maracatu Elefante eram para Dona Emília, boneca com garbo de princesa, que recebia as honras em seu altar. Sua beleza impressionante não escondia os encantos de Oxum. Símbolo de axé, a calunga era mais que um simples brinquedo, despertava devoção. Contava com a proteção da Dona Santa, matriarca da nação, vestida com trajes da majestade. Tendo Emília sob sua guarda, rainha Santa carregava a energia dos antepassados, e desfilava reverenciando os terreiros de Xangô, até chegar aos pés da Igreja de Nossa Senhora do Rosário. Foi no Pátio do Terço que ela encontrou a luz, para continuar o seu legado no aiyê, de Yalorixá para Yalorixá.

“Ô Mãe Badia Filha da Oxum
Aê, êô” (Rivaldo Pessoa)

No abebe de sua mãe, Santa enxergou Badia e encontrou nela a extensão de sua força, reflexo de si. Matriarca, negra, mãe de santo, filha de Oxum. Por trás do espelho, estava refletido o poder feminino, as marcas da resistência. Enquanto o povo de santo teve sua fé perseguida, Mãe Badia foi o afago e a direção. Em sua casa herdada das Tias do Terço, firmou as bases do Xangô de Pernambuco. Zeladora dos Orixás, ficou conhecida por cuidar de sua gente. Junto às outras Tias, se reunia em frente à igreja para louvar as vidas dos ancestrais.

“Largo do terço Quão largo profundo Bendito é o teu rito
Que eu verso” (Lenine, Carlos Rennó)

O lugar, que um dia já foi ponto de venda de escravos, hoje é ilê para o grande ritual. Pelas mãos de Badia, junto ao sociólogo Paulo Vianna, a pacata reunião das Tias cresceu até se tornar a celebração que é hoje. Milhares de fiéis esperam a meia-noite, para comungar da mesma energia das almas, que os trouxeram até aqui. O baque estanca para lembrar de Santa, Badia, das Tias do Terço, e de todos os líderes, que jamais deixaram de seguir a verdade de sua fé, frente à demonização das crenças. A luz se apaga, para que nunca se esqueçam das vidas pretas silenciadas por um Estado genocida. Após o ritual, os tambores voltam a rufar, para afirmar aos que insistem em se incomodar com o barulho dessas vozes, que a noite há de ser infinda, porque a luta nunca termina. Se hoje nos conectamos com essas memórias é porque precisamos de referências para escrever uma nova história. O som ensurdecedor dos tambores irá ressoar!

Agradecimentos: Tatá Raminho de Oxóssi, Babalorixá responsável por conduzir a cerimônia; Mestre Chacon Viana, Maracatu Nação Porto Rico.

Sinopse:
Lucas Milato e
Leandro Thomaz

Pesquisa: Lucas Milato
Leandro Thomaz e
Caio Araújo

Colaborações:
João Francisco Dantas e
Alex Carvalho

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