Arranco do Engenho de Dentro
“Nise – Reimaginação da loucura”
Carnaval 2024

S I N O P S E

Sou uma médica que aposta no poder da criatividade e tenho coragem para navegar contra a corrente. Por não conviver com gente ajuizada, sempre acreditei que para mudar a realidade é preciso se indignar e se contagiar. Certa vez ouvi que as imagens tomam a alma da pessoa. O mundo é um infinito de imagens e toda imagem é um infinito de mundos. Digo então a vocês: toda pessoa é um infinito de mundos. Não pretendo dar conta de toda a loucura do mundo, afinal nenhuma ciência é capaz de compreender a imensidão do universo de cada um. Mas a arte tem o poder de expressar as imagens que nos habitam. Acredito que é preciso imaginar: mostrar a imagem. A arte mostra a imagem e essa é a fonte para a existência de outros mundos. É preciso reimaginar! Assim, pelas asas da invenção, retorno ao Engenho de Dentro e caminho pelo Instituto que recebeu meu nome para analisar três telas pintadas pela história.

Diante das ruínas de um tempo passado, no primeiro quadro observo a mitológica figura do Caos: a imagem de um mundo de horror e brutalidade. Ela representa a razão que não abraça as diferenças, sustentada pelas metálicas grades que limitam a capacidade de criação, existência e liberdade. É um mundo que provoca traumas. Quando o ego é estilhaçado em inúmeros cacos que não se juntam mais, a aprisionadora razão costuma desumanizar a vida. Mas entre atritos e choques de pensamentos, surge o arqui-inimigo do violento Caos: a mitológica figura do Afeto! Ela traz consigo uma legião de rebeldes que lutam para fraturar a realidade que impõe um único modo de enxergar a vida. Movidos pelo ideal de que o Afeto pode desligar as máquinas da dor, decretam: “não aperto!”. Tal como um dia eu mesma fiz. Quebram-se os cadeados, caem os muros, triunfam as ocupações de uma revolução. Manicômio nunca mais! As imagens de novos mundos são possíveis pela loucura de se rebelar contra um sistema.

Ao circular pelas salas do Museu, encontro no segundo quadro a produção de outras consciências. O espaço imaginário constrói o espaço da realidade. A tela em branco é como uma janela que dá vista aos conflitos que se dão no inconsciente: é um território a ser habitado pelas mais diversas mitologias. Acredito na abstração como um ponto de tranquilidade e refúgio. Distanciando-se das traumáticas figurações do Caos, abstrair é tentar dar forma à linguagem dos Cosmos. De início, avisto linhas avulsas, traços retos e curvos pincelados como improvisações sobre as tramas. Me interesso também em ver as formas, os contornos de uma geometria sensível que aproxima a razão e a emoção. Os rabiscos performam as influências do mundo externo e as vivências internas que se transformam através de cores que preenchem gradativamente a tela. Na circulação dos saberes, os estilhaços são reorganizados em outras disposições. Cada parte, redesenhada e colorida, é composta em círculos que encontram outros círculos para formar uma singular ordenação cósmica. Vejo a mandala que resulta da busca por uma nova unidade. Cada mandala é o alvorecer do desejo de se reintegrar na existência de um outro mundo.

Pelas ruas do Parque, analiso o terceiro quadro como um emblemático panorama que salta para fora da moldura: a alegria da socialização! A arte, em seu papel de fixar significados, torna reais os universos imaginados. Como na ilusão da avenida, a vida é toda imaginação. Assim como eu, milhares de rebeldes reimaginaram a saúde mental. Para os caretas, fugir da realidade construída por eles sempre será loucura. É nessa ousadia que nos unimos para a criação de imagens afetivas do mundo em que queremos conviver. Nesta tela que é o presente, ouço os ecos de uma “Insandecida” batucada que me conduzem a uma “Loucura Suburbana” que transforma fantasias em realidade. Entre paetês e tamborins, vibra uma comunidade que é todo afeto: toca, canta, samba e me recorda de um saudoso “sonho meu”. Nosso chão dá lugar aos cosmos da folia. Em um bloco carnavalesco que celebra a vida sem preconceitos, saímos em cortejo pelas ruas do Engenho de Dentro até cairmos nos embalos de um Arranco que é todo amor. Pela loucura da mitologia de Momo [afinal, que maravilhosa loucura escrever um texto como se fosse a própria Nise da Silveira], fica a provocação dos artistas: e se reimaginássemos o ano todo?

Carnavalesco:
Nícolas Gonçalves
Texto:
Cleiton Almeida
Designer:
Marcos Alany
Obra:
Fernando Diniz
Pesquisa:
Cleiton Almeida, Lana Cristina
Mauro Cordeiro, Nícolas Gonçalves
Presidente:
Tatiana Alves
Vice-Presidente:
Dona Diná
Presidente de Honra:
Antônio Carlos Junior

CENTRO CULTURAL BANCO DO BRASIL. Nise da Silveira: a revolução pelo afeto. [Catálogo de exposição]. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2021. / DA SILVEIRA, Nise. Imagens do inconsciente: com 271 ilustrações. Editora Vozes Limitada, 2017. / DA SILVEIRA, Nise. Jung: vida e obra. Paz e Terra, 2006. / DA SILVEIRA, Nise. O mundo das imagens. Editora Ática, 1992. / NISE da Silveira – Posfácio: Imagens do Inconsciente. [Documentário]. Direção de Leon Hirszman, 1984-2014. 1 vídeo (80min). / STEIN, Murray. Jung: o mapa da alma. Editora Cultrix, 2004.

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