Estação Primeira de Mangueira
“À Flor da Terra – No Rio da Negritude entre Dores e Paixões”
Carnaval 2025

Argumento

Sob a luz do carnaval, a Estação Primeira de Mangueira levará para a avenida um olhar sobre a presença dos povos bantus na cidade do Rio de Janeiro.

Os bantus, um agrupamento linguístico do continente africano, representaram a maioria dos negros que adentraram de forma forçada pelo Cais do Valongo, localizado no que hoje se entende como Pequena África. A Mangueira retratará a vivência dessa população em toda a cidade, a partir da sua chegada nessa região, revelando sua história à flor da terra. Dando novo significado à expressão, exaltamos as vidas negras que florescem no solo carioca.

Repensando a negritude do Rio de Janeiro, que geralmente é centralizada na experiência nagô-iorubá, este enredo tem como base a percepção de mundo e a forma das populações bantus pensarem o ciclo da vida, a morte e a adaptação do seu modo de viver a diferentes realidades e lugares. Com esse olhar, a agremiação contará como os bantus se estabeleceram no território carioca, dialogando com diferentes religiões, influenciando a cultura, e a sua fundamental presença na vivência da cidade, apesar de tantas tentativas de apagamento da sua contribuição à negritude do Rio de Janeiro.

Sinopse

Ouça o ruído do mar. Pense em quem foi saído de Cabinda, de Luanda, de Benguela. Jogue o corpo pro centro do mundo. Prepare a mão pra bater, o pé pra riscar e o peito para vibrar nos acordes e nos tremores do som. Desaterre a experiência dos bantus, unidos pelos seus traços linguísticos, e criadores de uma sofisticada visão de mundo.

A sua própria leitura da realidade se manifesta no ciclo bakongo através da união do mundo visível e do mundo invisível. Vida e morte fazem parte do mesmo ciclo; não se anulam, complementam-se. Um entendimento sobre a existência que foi silenciado pelo racismo, na ideia de superioridade dos pensamentos brancos e pelo estabelecimento de uma outra forma predominante de refletir sobre a negritude.

Essa visão de mundo se reafirma contra as verdades históricas e contra o apagamento da sua contribuição africana de uma cidade que não se limita nas fronteiras tradicionais. O Rio também é o Atlântico. Pelo cais, o Rio também recebe o mar.

A água conduz as passagens e é no seu interior que estão guardados a memória e os mistérios ancestrais. É possível ver o invisível submerso sob o espelho d’água, conectando-se com as forças dos antepassados.

Nas kalungas, vida e morte se sobrepõem, dentre corpos, almas e inquices.

A terra absorve tudo o que nasce. É Kavungo. Anuncia memórias fincadas no solo, que guardam as dores em busca de reparação dos pretos novos e pretas novas. As entranhas subterrâneas revelam a verdade, expõem as marcas, devolvem o que se tenta esconder e apagar o que está à flor da pele – À Flor da Terra! A ventania de Kaiango governa os cursos espirituais, conduzindo caminhos. Finaliza e recomeça destinos que fazem a passagem e podem assim retornar ao ciclo da vida.

Em Ku Nseke, plano terreno, território de contato, ressurge o choque de culturas. Era o branco a própria morte, autoritário, que impõe a sua natureza e o seu feitiço de dominação sobre as populações negras.

Desse lado do Atlântico, os irmãos de cor, juntos, pela comunhão, buscam reconfigurar e estabelecer laços para promover afetos em vida. Irmanados pela ancestralidade, pelas frestas da santíssima macumba e por diferentes modos de existir, os bantus se fincam e transformam a sua realidade. Não de forma dócil ou ingênua, como incorretamente ousaram dizer, mas sim complementar, ao absorver o que alimenta a força vital. Agindo por si, com os outros.

Eles têm na natureza, nas ervas e nas plantas a sua essência espiritual, que se manifesta nas ciências e em saberes requintados. Suas mãos curam, transformam, criam e fazem do seu trabalho um lugar no mundo, espaço de viver e exercer parte de seu conhecimento trazida como bagagem.

São ferreiros, quituteiras, barbeiros, aguadeiras, trabalhadores urbanos e do porto, agentes da liberdade, seja pela compra ou pela luta, fundamentando uma outra experiência, que possibilita o trânsito e a circulação como sujeito da cidade.

Sujeito que também soube triunfar e enaltecer sua altivez em glória pelos caminhos do Rio.

Nos zungus, locais de intensa convivência, essa negritude, liberta ou não, recebe, acolhe, festeja, transbordando ancestralidade, imprimindo suas marcas em sua forma de viver e de se organizar em sociedade. Panos brancos tremulam aos ventos nas janelas dessas habitações, anunciando refúgio aos necessitados.

Os povos bantus são capazes de reconstruir sua terra em qualquer espaço. Com as relações comunitárias, modificam o lugar, negociam e entrelaçam culturas. Modelam novos territórios, forjam novas práticas e hábitos. Apoderam-se afrontosamente do Rio, agregando outros saberes para reformular as suas próprias experiências.

Ao ocupar a cidade, as contribuições dos bantus se diluem e pulsam na identidade negra do território carioca. Tagarelamos, comemos, tocamos e dançamos conforme as heranças e as tradições desses povos. Ter um dengo, criar um moleque, reunir-se em kilombo, ir pra macumba, pedir na umbanda, bailar como nos lundus, comer um quiabo pra não pegar um feitiço, cozinhar com fubá, mergulhar no dendê, fazer um batuque, chocalhar um ganzá, tomar cachaça. De boca em boca, mais do que palavras, práticas também são passadas de gerações para gerações. Esses conhecimentos fundamentais atravessam o tempo, cruzam o espaço e se revelam no cotidiano de um Rio de Janeiro tão efervescente.

Além de arquivo a céu aberto, a rua guarda as memórias, as dores, as paixões e as lutas dos bantus. Diferentes formas de existir se fazem presentes nas esquinas, ruas, vielas, por onde circulam herdeiros desses povos recriando saberes e constituindo a vida de forma revolucionária.

Das cicatrizes de uma cidade caótica, surgem flores que promovem o horizonte negro. Ao andar pelo Rio, movimentar a vida, balançar o corpo, propagar conhecimentos, ensinar valores, cria-se uma forma de restabelecer conexões através do futuro ancestral. Com feridas abertas de um passado presente, persistem desaparecimentos, silenciamentos e apagamentos de uma juventude marginalizada e negra, que abre novas frestas desejando as venturas do mundo.

Olhe o céu. Escute o trânsito das kalungas. Pense na pipa e no barulho da rua. Sente os sons graves e ruidosos que estão no dia a dia carioca. Ouça os toques d’Angola, o tamborzão e a batida do funk. Prove esse solo aterrado de memória sabendo que o samba macumbado no couro da mão tem razão de ser. A cidade se veste de branco nas renovações de ciclo. A cidade continua. A cidade festeja a vida para se encantar dela. A cidade ousa viver e construir futuro. Tem uma nova chance a cada alvorada, a cada cria, a cada sol, que nasce todo dia desse mesmo chão, carregando consigo as experiências dos seus mais velhos e reinventando a liberdade.

Atrevida por natureza e banhada da ancestralidade bantu, a alma carioca desafia a morte, celebra a vida e faz carnaval!

Glossário

Bantus: Termo usado para designar o conjunto de povos localizados na região do centro-sudoeste do continente africano. Representaram a maioria dos negros escravizados enviados para o Cais do Valongo. É o plural de “muntu” (pessoa).

Ciclo Bakongo: Cosmograma que ilustra parcela da visão de mundo Bantu ao separar, com a linha horizontal da Kalunga, o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Representa o ciclo da vida em suas fases de concepção, nascimento, desenvolvimento e morte.

Desventura: Ideia bantu de quando há sofrimento, dor e infelicidade pela ausência de conexão ancestral. Contrário de ventura.

Força vital: Energia agregadora, que move o mundo e as pessoas.

Inquices: Divindades ligadas ao Candomblé de Angola. Esses se assemelham aos Orixás para os Iorubás.

Kaiango: Divindade ligada ao panteão do Candomblé de Angola. Está associada ao fogo das profundezas da terra e aos fenômenos dos ventos, pelos quais comanda os destinos dos Nvumbis (mortos).

Kalunga: No vocabulário bantu representa a ideia de grandeza e imensidão. Pode designar a morte, o mar (kalunga grande) e cemitérios (kalunga pequena).

Kavungo: Divindade ligada ao panteão do Candomblé de Angola. Relacionada à saúde e à morte. Considerada a própria terra.

Ku Nseke: Mundo terreno, de acordo com o Cosmograma Bakongo.

Pretos Novos e Pretas Novas: Termo usado para denominar negros e negras recém-chegados à estrutura social colonial escravocrata, principalmente para a parcela que morria durante a travessia ou logo que chegavam ao Cais.

Ventura: Ideia bantu de quando há ausência do mal por meio da plenitude da conexão aos antepassados. Contrário de Desventura.

Zungus: Complexos comerciais, festivos e de habitação em que interagiam, predominantemente, negros escravizados e libertos. Para as línguas bantus, zungu é interpretado como “buraco”, “toca” ou “casa de angu”.

Ficha Técnica
Presidente: Guanayra Firmino
Vice-presidente: Moacyr Barreto
Carnavalesco: Sidnei França
Autoria do Enredo: Sidnei França
Pesquisa e Texto: Sidnei França
Ariel Portes, Felipe Tinoco e
Sthefanye Paz

Referências
Texto: Sidnei França, Ariel Portes, Felipe Tinoco e Sthefanye Paz.
Consultoria de Mam’etu Mabeji e dos integrantes do terreiro Kupapa Unsaba (Bate-Folha Rio de Janeiro), além dos professores Alcino Amaral, Júlio Cesar Medeiros e Mônica Lima.
Beniste, José. História dos Candomblés do Rio de Janeiro. Editora Bertrand Brasil, 2020.
Cruz, Eliana Alves. O crime do Cais do Valongo. Rio de Janeiro: Malê, 2024.
Lopes, Nei. Bantos, malês e identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
Lopes, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. Selo Negro Edições, 2014.
Lopes, Nei. Novo Dicionário Banto do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2012.
Lopes, Nei; Simas, Luiz Antonio. Filosofias Africanas: uma introdução. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020.
Lima, Mônica. História, patrimônio e memória sensível: o Cais do Valongo no Rio de Janeiro. Outros Tempos: Pesquisa em Foco-História, v. 15, n. 26, p. 98-111, 2018.
Lima, Mônica. Org. Heranças Africanas no Brasil: História, Conhecimento e Criação. Samba em revista, edição especial, n. 11, dez. 2021.
Medeiros, Júlio Cesar. À flor da terra: o Cemitério dos Pretos Novos no Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado em História Social) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
Motta, Aline. A água é uma máquina do tempo. eLyra: Revista da Rede Internacional Lyracompoetics, n. 18, p. 333-337, 2021.
Prandi, Reginaldo. Aimó: uma viagem pelo mundo dos orixás. Editora Seguinte, 2017.
Santana, Tiganá. A cosmologia africana dos bantu-kongo por Bunseki Fu-Kiau: tradução negra, reflexões e diálogos a partir do Brasil. Tese (Doutorado em Letras) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.
Silva, Vagner Gonçalves da. Através das águas: os bantu na formação do Brasil / Vagner Gonçalves da Silva, Tata Nksi Katuvanjesi – Walmir Damasceno, Rosenilton Silva de Oliveira, José Pedro da Silva Neto. São Paulo: FEUSP, 2023.
Silveira, Leandro Manhães. Nas trilhas de sambistas e “povo do santo”: memórias, cultura e territórios negros no Rio de Janeiro (1905-1950).
Dissertação (Mestrado em História Social) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012.
Simas, Luiz Antonio. O corpo encantado das ruas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.
Simas, Luiz Antonio. Umbandas: uma história do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021.
Wa Mukuna, Kazadi. O contato musical transatlântico: contribuição bantu na música popular brasileira. África, n. 1, p. 97-101, 1978.

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Edenilson Oliveira

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Denise Silva

Não curti

João Filho

Denise Silva Você nem leu porra kkkkkkkkkkk só bota que não curtiu pra ser do contra. Todo mundo aqui já te conhece.

Mauro Santos

bem didátida, finalmente entendi o enredo….a proposta…

João Filho

Objetiva e de fácil compreensão. Muito bem elaborada.

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