001034 salgueiro

Acadêmicos do Salgueiro
“Salgueiro de corpo fechado”
Carnaval 2025

S I N O P S E

Salve Deus

Corpo Fechado. Imune, invulnerável, à prova de bala, faca, coice de animal, graças a processos secretos de feitiçaria tradicional. O corpo fechado pode resultar de amuletos usados ao pescoço, livrando o portador de todos os perigos, morte súbita, prisão, agravo (injúria), ou por se ter submetido ao cerimonial do feitiço, muamba, catimbó, macumba, de variadas formas, quase dependendo de cada mestre a maneira e cerimonial do ato. Em geral, há o auxílio de cânticos rituais, sacrifícios de animais, velas etc.

CASCUDO, Luis da Câmara – Dicionário do Folclore Brasileiro / São Paulo: Global Editora, 2000 Pag. 162

Feitiço. Mandinga. Quebranto. Só ele sabe rezar. O preto velho mandingueiro veio para trabalhar. Adorei as Almas! Sempre no nosso caminho, aliviando qualquer penar.

Senhor Marabô, Exu dono da minha porteira, é aquele que vence toda demanda. Traz Exu Pimenta também para nos ajudar. Sentinela de Xangô, o meu protetor, firma ponto, ponto de fé.

Mau-olhado, espinhela caída, erisipela, vento virado, peito arrotado. Sai pra lá! Tenho meu corpo cruzado, fechado.

Sem medo de macumba, sem medo de quiumba, o Salgueiro prepara o tacho de óleo de oliva, arruda, guiné, alecrim, carqueja, alho e cravo. Com o sinal da cruz na fronte, no peito, nas mãos e nos pés, nossa escola vai entrar na maior encruzilhada do mundo, a Marquês de Sapucaí, de corpo fechado. A história e cultura do fechamento do corpo está inserida em um conjunto de crendices presente em religiões africanas e européias que sobreviveram à travessia do Atlântico. Ao longo do tempo, o pacto para a proteção do corpo se diversifica e caminha com nuances próprias nas pequenas cidades do interior, na zona rural, na periferia, na cidade grande. Territórios de um mundo mágico-religioso, povoado de rezas, crenças, simpatias e benzeções.

A crença na invulnerabilidade chegou ao Brasil por meio dos mandingos escravizados, do antigo Império Mali, que eram ao mesmo tempo guerreiros, feiticeiros e seguidores do islamismo. Do nome desse povo, veio o termo mandinga, no sentido de feitiço, mágica, coisa-feita, despacho. Embora fosse seguidor da religião islâmica, o fundador do Império Mali, Sundiata Keita, possuía, conforme se acreditava, poderes mágicos vindos dos amuletos que utilizava. As chamadas bolsas de mandinga eram costuradas em pano ou couro com passagens do Alcorão, portadas junto ao corpo para trazer proteção e poder, que se intensificavam em proporção direta ao número de talismãs usados.

Trazidas à Colônia, foram adaptadas como “patuás terapêuticos” contra “males” do corpo e da alma. Supunha-se que as bolsas de mandinga tinham propriedades de cura e que fechavam o corpo contra doenças e feitiços. Na Bahia, as passagens corânicas foram substituídas por orações cristãs, acrescidas ainda de diversos elementos, como balas de chumbo, pedra de corisco, pólvora, olho de gato, osso de defunto, moedas de prata, sangue humano e de animais. A potência das mandingas estava no ritual que lhes conferia um poder místico após sua confecção. Eram cozidas dentro de bolsas e defumadas com incensos e ervas para depois serem benzidas e enterradas em encruzilhadas à meia-noite ou depositadas debaixo do altar de uma igreja para em cima delas serem rezadas três missas, o que as tornaria ainda mais poderosas. Além de acreditarem ter o corpo fechado ao usá-las, muitos daqueles que traziam tais objetos em volta do pescoço esperavam também que lhes trouxessem dinheiro, sorte e mulheres.

Da mesma forma, no sertão, existia a ideia de que o corpo do cangaceiro era magicamente fechado, protegido contra armas e munição. Muito supersticiosos, estruturavam suas vidas de acordo com uma série de rituais. Tinham obsessão por cobrir os próprios corpos com símbolos, emblemas e orações protetoras: estrelas posicionadas na frente e no verso de chapéus protegiam contra o olho gordo; as estrelas de oito pontas recordavam a macambira, uma planta espinhosa comum na região, que ninguém tocava; a flor-de-lis, representação do lírio, era um símbolo de pureza, atributo ironicamente admirado pelos bandidos. Crucifixos, rosários, o manto da Virgem Maria… Os sertanejos constituíram assim seu próprio “manto sagrado”, todos armados de mosquetões, excentricamente adornados, para cobrir o corpo masculino “aberto” pela mulher.

Moreno, um cabra bem famoso, o feiticeiro do bando de Lampião, conhecia todas essas formas de pactos e ritos para fechar o corpo. O cabra cujo a volante tinha raiva por ele e o bando sempre escaparem contou que fechou os corpos de quase todos os aliados, fazendo-lhes patuás poderosos; e ainda santificou-lhes os anéis para que tivessem uma mira certeira e uma argúcia mortal no manejo dos punhais. Aos mais perigosos e mais procurados pela polícia, Moreno ensinou como se “envultar” (ficar invisível) através de pactos com “diabos dóceis”. Reza a lenda que Lampião quase sempre declinou dessas feitiçarias. Temente a Deus e afilhado de Nossa Senhora, ele “não queria ficar devendo favor ao Diabo”. O chefe dos cangaçeiros só aceitou levar um sinete na aba dianteira do chapéu que lhe concedia talentos premonitórios. Quando foi abatido no cerco de Angico (Sergipe), Lampião estava usando um outro chapéu, estava “desprotegido”. O “chapéu mágico” fora devolvido ao próprio Moreno, que dele recortou o sinete e o guardou consigo até sua morte, aos 100 anos.

Fé ou superstição? Sempre há quem enfrente as crendices de peito aberto. Mas se a ideia é fechar o corpo, haverá aqueles que procuram, nas rezas e nas devoções, uma calmaria para o desassossego. Para todos os males que atingem o corpo e a alma do homem, sempre há uma reza para curar. Corpo e espírito não se separam. Hoje, várias cerimônias para fechar o corpo são feitas pelo país. Essa prática visa tornar a pessoa invulnerável não apenas a armas, como também da inveja, doenças, má sorte etc.

Contra a panema, no linguajar indígena, desgraça, infelicidade, poderes sobrenaturais são exercitados com adornos de santos combinados com velhos espíritos da selva, os “encantados”. Pessoas que estiverem acometidas pelo “roubo de sombra” só tendem a ser consideradas curadas quando benzidas a partir do ritual da pajelança, um ritual de restabelecimento espiritual. O pajé dança, canta o toante e o maracá, carrega plantas, penas. Nas cerimônias Pankararu, o “remédio do mato” recobra do flechamento, quando “bichos ruins” ou entidades malignas desejam se apossar do espírito da pessoa. Aqui a cura vem do poder da mata. A mata tem uma gente que tem muito poder.

Jurema Preta, senhora rainha
és dona da cidade, mas a chave é minha.
É tupereneguê, é tuperenaguá
Salve o povo
da Jurema
Deixa os mestres trabalhar.

Trecho de um cântico
dos rituais de Jurema

Em uma religião que celebra a vida, é fácil perceber que um corpo saudável é uma obrigação essencial. O corpo no Candomblé alcança e representa o sagrado, traz sentimentos, sensações e emoções. Com banhos de ervas (abô), passes magnéticos e palavras encantadas, para formalizar e sacralizar o ritual de fechamento de corpo, usa-se o contra egum. Uma ferramenta de defesa confeccionada em palha da costa, podendo conter búzios e/ou contas referentes aos Orixás ou Divindades, que possui uma grande quantidade de axé, agindo sobre a áurea eliminando todas as energias negativas e doenças do corpo. Somente o corpo doente pode encontrar essa cura; somente a ferida que dói, uma hora cicatriza.

É o corpo que se fecha, como uma casa que veda suas frestas.

E no meu terreiro, Salgueiro, quem me protege não dorme. Advogado dos pobres e doutor das doenças da alma, do corpo e do espírito, mestre da jurema, Exu na Quimbanda, Preto Velho na Linha das Almas, feiticeiro, mandingueiro, orador, rezador, catimbozeiro, dono da magia. Defensor dos feitiços e das magias negativas. Trabalha em todas as linhas espirituais, tanto na direita quanto na esquerda da Umbanda, Quimbanda, Catimbó… Seu Zé é um mistério divino. Mestre curador porque faz cura, trabalhos de virada. Malandro da Lapa. Acompanhado de sua Falange de Malandros, atua como protetor da minha casa. Vigia quem entra e quem sai, toma conta do entorno para me defender. É bom, pois faz o bem, mas, quando está “virado”, manda a maldade de volta para quem enviou. Despacha, se vinga.

O inimigo cai, eu fico em pé.

Porque eu tenho meu corpo fechado, tenho um malandro do meu lado pra me acompanhar. Que Seu Zé me proteja daquilo que não posso ver! Que meus inimigos não me vejam nem de noite, nem de dia, nem no pingo do meio dia. Que assim seja.

Texto: Igor Ricardo
Carnavalesco: Jorge Silveira

Referências bibliográficas:
ANDRADE, Mário de. Música de Feitiçaria no Brasil/ Mário de Andrade. 2. ed. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 2006.
CALAINHO, Daniela Buono. Metrópole das mandigas: religiosidade negra e inquisição portuguesa no antigo regime. Garamond, 2008.
1 CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo: Global Editora, 2000. Pag. 162.
LOVO, Arianne Rayis. Caminhando junto: produção de cura, corpos e “caminhos” a partir das rezadeiras Pankararu. Unicamp/SP, 2018.
MAUÉS, Raymundo Heraldo. Um aspecto da diversidade cultural do caboclo amazônico: a religião. Estudos avançados, Quixadá: Uiniquixadá, 2005.
NERY, Vanda Cunha Albieri. Rezas, Crenças, Simpatias e Benzeções: costumes e tradições do ritual de cura pela fé. Centro Universitário do Triângulo – Uberlândia/MG, 2004.
SANTIAGO, Luís. O mandonismo mágico do sertão: Corpo fechado e violência política nos sertões da Bahia e de Minas Gerais (1856-1931). Loope Editora, 2021 (2ª edição).
SANTOS, Vanicléia Silva. As bolsas de mandinga no espaço Atlântico: século XVIII. São Paulo, 2008.

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