Lins Imperial
Lins Imperial
“Mussum pra sempris – Traga o mé que hoje
com a Lins vai ter muito samba no pé!”
Carnaval 2022
Texto-mestre, ou sinopsis
Dizem que, quando o menino, preto retinto, nasceu com cara de quem tem fome aqui no Morro da Cachoeirinha, veio um anjo atrapalhado, desses que vivem se escorregando pelo caminho, desengonçado, que disse: Vai, Carlinhos. Ser estrela na vida. E o garoto foi. Desajeitado, mas foi. Entre cambalhotas, tropeços e acertos, mas foi. Tudo para ele virava espetáculo. Tanto que ele não era apenas um. Carlinhos era vários.
E o garoto, muito travesso, debandou com tantas pernas por aí, sempre a se aventurar. Não parava num canto. Escorregava daqui. Escorregava dali. Escorregava acolá. Era difícil de segurar Carlinhos. Preto sabido, ele driblou a miséria, cortou na mão as dificuldades que a vida lhe impusera. De verdade, meus cumpadis, não tinha tempo ruim para ele. Até porque sabia tirar proveito de tudo para viver, por alguns instantes, em céu de brigadeiro. Eita, menino arteiro.
Um dia, o mé, que bota a gente comovido como o diabo gosta, fez Carlinhos sair perambulando pelo subúrbio carioca. E no meio do caminho do garoto tinha um bloco. Tinha um bloco no meio do caminho do garoto. Era o União da Guanabara, com tanta gente com cara de fome que nem ele, improvisando no visual e na percussão. Foi ali, rapaziada, que o menino da Cachoeirinha viu no samba uma possibilidade de ser estrela na vida. Carlinhos, daí em diante, nunca mais se esqueceria deste dia. Nunquinha. Porque descobriu ser pé de valsa, cortejando feito mestre-sala. Porque descobriu que também era mestre-sala na arte da música de se reinventar, levando jeito para tocar, de forma incomum, um velho reco-reco cavado num gomo de bambu.
É, o moleque era atrevido. Tão atrevido que não demorou pra como Carlinhos do reco-reco ficar conhecido. Que ironia, né?. Ganhou o apelido de um instrumento que, em suas mãos, virava ouro, deixando de ser considerado da ralé. E logo não tardou para ele mesmo fazer seu reco-reco, com metais, parafusos e mais o que se tinha por perto. Mas a protagonista da história era mesmo a mola. Ela, igualzinha a ele, ora. Que encolhe, estica, parada não fica, balança, mas não cai. Ui, ui, ui, papai.
Carlinhos, nessa bagaça, embarcou no bonde do samba e conheceu, pelas bandas de uma tal Praça, o Clube dos Baianos, onde deixou de ser um simples frequentador para começar a virar um artista que tira o seu ganha-pão tocando. A admiração pelo talento de Carlinhos era tanta que fez com que ele ali mesmo fosse parar num tal de Modernos do Samba, que depois virou Originais. Neste grupo, meus cumpadis, só tinham os de fé, os geniais.
E o sucesso foi chegando, no sapatinho, como: contando sobre a nêga Tereza, que deixou de pista um malandro, indo dar uma sambadinha lá no morro com outro fulano; tirando sarro da cuíca da vizinha Maria, que adorava um sururu na esquina com o Peru; e entregando que, de tanto glup glup pra lá, glup glup pra cá, acabou acontecendo uma Tragédia no Fundo do Mar.
Enfim, o rapaz, danado que só, destaque no grupo, foi ganhando mansamente os palcos da vida e do mundo, mundo, vasto mundo.
Carlinhos, como um bom batedor de pernas que era, também foi dar um rolé em Mangueira, pelas vielas da favela. Ele era gente da gente. Gostava de dar perdido principalmente nas biroscas que tinham no Buraco Quente. Onde vista assim do alto mais parece um céu no chão, pisou miudinho sobre folhas secas e até foi parar no quintal de Dona Neuma. Lá, aprendeu que madeira de dá em doido é jequitibá. A partir de então, do Morro de Mangueira, não queria mais arredar o pé, não.
O moleque, rapaziada, acabou ainda se apaixonando por uma tal de Primeira Estação. Carlinhos dizia que era um sentimento tão grande que nem cabe explicação. Daí, varava as noites na Cerâmica, fazendo amizade com tantos bambas consagrados. E também não perdia a oportunidade de mostrar na quadra da Velha Manga que entendia do riscado.
E escola de samba ensina… Ah, como ensina. Deixou na memória de Carlinhos marcado o Mundo Encantado de Monteiro Lobato e toda poesia e verdade do Reino das Palavras de Carlos Drummond de Andrade. Como dizem, torcer para a Mangueira é o a-a-a-ço. Imagina só: Quanto orgulho o rapaz não tinha de ter participado dos desfiles a esses escritores que deram à Estação Primeira campeonatos?.
Ah, e sabe quando, mesmo sem querer querendo, você vira de uma família membro e até apelido acaba tendo? Foi justamente isso que aconteceu com Carlinhos. Ele ficou todo prosa, pois agora era filho da Manga Rosa. E embalado pelo som dos tamborins e o rufar do tambor que cortavam a manhã, percebeu que era Mangueira, sim. Pra hoje, pra sempre e até pra Amanhã.
E pernas pernas pernas. Nas suas andanças, Carlinhos foi até parar nas telas. De um jeito atabalhoado, sempre com a cara assustada e os olhos esbugalhados, caiu nas graças do povo. E ele era realmente muito engraçado. Todos queriam vê-lo de novo e de novo e de novo. Mas ora, ora, quem diria. O rapaz que para ator achava que não levava jeito nenhum, ganhou de Grande Otelo até o apelido de Muçum – peixe escorregadio, difícil de pegar, que se adapta em qualquer lugar. E se não bastasse de aventuras isso tudo, com seus ezis e izis, foi parar na Escolinha do Professor Raimundo. É. Mussum era mesmo palhaço, um insociável, que, mesmo abduzido ao Planalto dos Macacos, adorava fazer graça, levando toda gente a morrer de rir, perder o ar de tanto dar gargalhadas.
É, meus cumpadis, Não tinha jeito, não. O circo tava montado. Nas voltas que o mundo dá, Mussum foi virar um global Trapalhão. E nas poltronas, de casa, dos cinemas, ou de qualquer outra apresentação, o palhaço era aclamado, a grande estrela, a atração.
Mas quis a vida pregar uma peça no menino que vivia pregando peça nos outros. Carlinhos foi se empirulitar. Só que seu sorriso continuou passeando por aí. Tá em todo lugar. Dando esperança a tantas crianças. Estampando lembranças. Atravessando o tempo para de novo uma pindureta armar. Reivindicando o direito de que ser pretis não é absurdo. Reinventando a arte num mundo caduco.
E segue, meus cumpadis, com seus bordões eternizados, perambulando por aí, o que um anjo atrapalhado disse ao garoto daqui do Morro da Cachoeirinha: Vai, Carlinhos. Ser estrela na vida. Vai, Carlinhos. Ser estrela na vida.
É, Carlinhos é mesmo uma estrela, sim. Pra sempris em nossos coraçõezis… E fim.
Inserções feitas no texto com trechos de “Poema de sete faces”, de Carlos Drummond de Andrade; de “Sei lá, Mangueira”, de Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho; de “Jequitibá”, de José Ramos e Marcelino Ramos; “O meu guri”, de Chico Buarque de Hollanda. Obra consultada: BARRETO, Juliano. Mussum forévis – samba, mé e Trapalhões. Disponível em: . Acesso em: 29 jul. 2020.
Carnavalescos:
Eduardo Minucci e
Raí Menezes.
Texto, pesquisa e desenvolvimento:
Mateus Pranto e
Raphael Homem
Locutor nas escolas de samba do Rio de Janeiro.
Analista de Sistemas, Jornalista (RG 39675/RJ).
Radialista, Compositor e Intérprete.
Repórter do site Carnaval Carioca.