Sereno de Campo Grande
“4 de dezembro”
Carnaval 2024

“No dia 4 de dezembro
Vou no mercado levar

Na baixa do sapateiro
Flores pra santa de lá

Bárbara santa guerreira
Quero a você exaltar

É Iansã verdadeira
A padroeira de lá”

4 de Dezembro – Tião Motorista

Um raio risca o céu turbulento de um azul muito escuro. A brisa se transforma em lufada. Um barulho intenso toma o bambuzal enquanto um sopro forte agita cada tronco. É o mesmo vento sereno das asas de uma leve borboleta. É também o bafejo que roça nos pelos escuros de um búfalo feroz, que pisa forte em meio a floresta. Ou, ainda, o deslocar sutil da água mais profunda, na força que gera vida no fundo do mar em um simples coral.

No coração do velho e negro continente, ela é a ventania que se espalhou implacável, balançando as matas, agitando as águas e que seduziu quem a viu passar nas curvas do Rio Níger. Rápida e certeira, não deixa vestígios, mas enfeitiça. Todos param para vê-la passar. Firme, altiva, encantadora, e sempre disposta a guerrear. É bela, a Oyá.

Poderosa de si e de suas vontades, conquistou múltiplos amantes e deles ganhou atributos e saberes. Antes de dominar o fogo, através da paixão de Xangô, aprendeu com Exu a usar a magia. De Ogum, veio o domínio sobre a espada e de Oxaguiã, o manejo do escudo. Em cada qualidade, Oyá encontra, como o vento, espaço em diferentes narrativas, múltiplas propriedades e diversas formas de exercer o seu domínio do Orum sobre o Ayê. Apesar de tantos companheiros, foi com o Rei de Oyó que viveu a relação mais intensa.

Entre os poderes que carrega consigo, tem no ritmo do seu balé e de seus instrumentos, o comando e o exercício de guia sobre os desencarnados para o Orum. São os Eguns, que ao deixar o plano físico se orientam através da força daquela que é dona de todo caminho que não precisa de estradas. Abrindo rotas feitas de brisa guiou almas e saberes através do Atlântico, do tempo e da própria morte.

“É vista quando há vento e grande vaga
Ela faz o ninho no rolar da fúria
E voa firme e certa como a bala
As suas asas empresta à tempestade
Quando os leões do mar
Rugem nas grutas

Sobre os abismos passa e vai em frente
Ela não busca a rocha o cabo o cais
Mas faz da insegurança sua força”
(Sophia de Mello Breyner Andresen
Obra Poética III
Caminho, Lisboa 1997, 19)

Em terras ameríndias, a bela deusa negra baixa nos terreiros. Nas práticas dos vários axés encontrou assentamento. A bordo da sobrevivência de seus rituais, no preparo de seus alimentos, em seus toques, na voz daqueles que lhe cantam e na oralidade que mantém viva a sua essência e cada um de seus nomes e domínios, seja Oyá, Iansã ou até mesmo Bárbara.

Em tempo e lugar muito distantes, Bárbara existiu e ficou conhecida pelo raio que fulminou aquele que lhe tirou a vida por castigo à sua fé. Era Oyá o próprio relâmpago que guiou a jovem para uma terra santa. Bárbara, já enquanto Egun, encontra na velha Bahia uma forma de se encantar ao ser levada pelo balé de Iansã e, fazer ao lado dela, morada nos gongás e nos altares do povo que busca se proteger das tempestades da vida, reunindo multidões de fiéis. No alto do céu dessa devoção iluminada pela justiça de um raio, risca um ditado que diz e sentencia: “Não é que Iansã seja Santa Bárbara, é que Santa Bárbara é de Iansã”.

“Protetora contra raios, trovões, tempestades e mortes repentinas. Ó Santa Bárbara, que sois mais forte que as torres das fortalezas e a violência dos furacões, fazei que os raios não me atinjam, os trovões não me assustem e o troar dos canhões não me abalem a coragem e a bravura.” Trecho da oração à Santa Bárbara.

É no quarto dia do último mês do ano que Salvador se tinge de vermelho, quando um vento forte sacode as bandeirinhas que enfeitam o Pelourinho. No andor decorado de rosas rubras e brancas estão as duas faces de uma mesma fé: As guerreiras que guardam o comércio da cidade são celebradas por toda a gente. Nos tabuleiros das baianas estão os bolinhos de fogo. Os pratos de caruru vão sendo servidos para as multidões como forma de promessa. Antes da festa começar, as giras celebram o dono da rua e de todos os caminhos, assim como marias, tiriris e pombas-giras, com quem Iansã saudou o fogo. Nos andores, desfilam também as imagens de São Cosme e São Damião, São Jorge, São Sebastião, São Miguel, São Lázaro e São Jerônimo, representando seus rebentos, uniões e amores.

Oyá, que havia ganhado de Olorum o poder sobre os mortos ao criar o rito funerário do axexê, se torna figura central de uma celebração muito vizinha. Na reunião de seus fiéis, no preparo de suas comidas, no entoar de suas músicas, no bailar de seus ritmos, na louvação de seus instrumentos, é cultuada, ao lado de Santa Bárbara, em uma festa que não apenas busca, como encontra a vida na morte e faz do raio de Iansã um riscado de fé no calendário da sua devoção: O 4 de dezembro. Um desses dias que o Brasil se refunda e se refaz nas entranhas, nas brechas e nos lembra da beleza e força da nossa gente. Amém, Bárbara. Epahey Oyá!

“Mas um dia a morte levou Odulecê
Deixando Oyá muito triste

A jovem pensou numa forma
De homenagear o pai adotivo

Reuniu todos os instrumentos
De caça de Odulecê (…)

Também preparou todas as iguarias
Que ele gostava de saborear

Dançou e cantou por sete dias
Espalhando por toda a parte
Com o seu vento, o seu canto
Fazendo com que se reunissem no local
Todos os caçadores da terra (…)

Olorum, que tudo via
Emocionou-se com o gesto de Oyá

E deu-lhe o poder de ser a guia
Dos mortos no caminho do Orum (…)

Desde então todo aquele que morre
Tem seu espírito levado ao Orum por Oyá

Antes, porém, deve ser homenageado
Por seus entes queridos,

Numa festa com comidas
Cantos e danças.

Nasceu assim o rito funerário do axexé”
(Prandi, 2001, p.310)

Desenvolvimento de enredo:
Juliana Joannou
Leonardo Antan
Thiago Avis
Texto:
Juliana Joannou
Leonardo Antan

Referências bibliográficas:
Bahia. Governo do Estado. Secretaria de Cultura. IPAC. Festa de Santa Bárbara. / Governo do Estado, Secretaria de Cultura, IPAC. – Salvador: Fundação Pedro Calmon, 2010.

COUTO, Edilece Souza. Tempo de festas: homenagens a Santa Bárbara, N. S. da Conceição e Sant’Ana em Salvador (1860 — 1940). Tese de Doutorado em História da USP, Assis, 2004.

PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia Letras, 2001.

SANTOS, Vagner José Rocha. Salve Bárbara! Caminhos de uma festa popular na Cidade da Bahia. Tese de doutorado da UFBA, Salvador, 2021.

SIMAS, Luiz Antônio; RUFINO, Luiz. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018.

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