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Paraíso do Tuiuti
“Quem tem medo de Xica Manicongo?”
Carnaval 2025

S I N O P S E

Trago verdades. Não, necessariamente, as suas.

Pisei na terra dos antigos, bebi na fonte dos eternos, respirei a fumaça do encantamento e agora vou contar para vocês o que meus olhos leram nos escritos desse mundo, minhas orelhas ouviram diretamente da boca do lado de lá e minha alma sentiu quando a ancestralidade se materializou.

A poeira assentada no passado se levantou do chão e me falou do tempo primordial bantu, de quando as energias masculina e feminina emanavam nos exus sem distinção de sexo.

Exu de duas cabeças vibra na encruzilhada dessas duas polaridades ordenando o caos criacional, mesmo após Exu Rei ter dividido as energias em dois corpos distintos. São faces de uma mesma moeda. Coexistem e se complementam na veia que corre entre o mundano e o astral.

Muito antes da cruz do homem branco rasgar o ar das terras africanas, sacerdotes já cultuavam os antepassados no Reino do Congo, onde ela nasceu varão.

Predestinada.

Acreditavam serem sagrados os que recebiam a dádiva de conter almas identificadas com o gênero diferente ao do seu corpo nascido, como se um único ser corporificasse os espíritos masculino e o feminino. Uma existência completa, plena, capaz de ser transição entre dois mundos, detentores da sabedoria, comunicadores da ancestralidade.

Tais caminhos que se entrecruzam em um só, faziam a mulher transbordar naquele corpo de homem. Sim, o varão era uma cudina congolesa. Uma bela Jimbanda, uma poderosa kimbandeira. Uma sacerdotisa Manicongo, senhora do Congo e da magia.

Mas a religião do colonizador europeu demonizou sua existência e crença. Ela disse: “NÃO”. Se recusou a renunciar sua natureza, sua identidade.

Pagou alto pelo atrevimento.

Escravizada, a fizeram de mercadoria do Reino de Portugal. Seu nome africano se perdeu, ignorado nos cadernos de anotações que escrituravam o roubo da liberdade. Sob as bênçãos de nosso Senhor foi batizada Francisco e transportada para São Salvador da Bahia de Todos os Santos, a capital da colônia do Brasil.

Francisco Manicongo, registrada, assim, impuseram-na obediência a um deus, um rei e um dono.

Foi vendida a um sapateiro que muito insistia em mantê-la sob as rédeas do “cistema”. Porém, aquelas vestes, aquelas calças, aquele nome, aquela fé, não a pertenciam. Eles não eram dela. Ela não era deles.

Então, ela disse: “NÃO”. Se recusou a renunciar sua natureza, sua identidade.

Ela não era Francisco, ela era Francisca, era Xica.

Xica Manicongo.

E lá se foi Xica: sobranceira, batendo os tamancos, subindo e descendo as ladeiras à serviço ou passeando, envolta no tecido preso à cintura com o nó para frente, como se fazia na sua terra, ao modo Jimbanda.

E lá se ia Xica: faceira, no ganho ou na saliência pelos becos e cantos, envolta por braços másculos e línguas alcoviteiras, dissimulando o amor que não ousa se dizer o nome, como feito na sua nova terra ao modo dos hipócritas.

E lá se via Xica: afrontosa, na companhia dos “invertidos”, de originários tibiras(1) e çacoaimbeguiras(2) pelos logradouros e matas, envolta na dor e delícia de ser o que se é, como já se fazia nessa terra, ao modo Pindorama.

(1) Palavra usada na língua Tupi para designar indígenas gays. (2) Vocábulo equivalente para mulheres lésbicas.

E lá estava Xica: embrenhada na floresta tropical, fazendo calundu, desbatizada indígena, abraçada pela Jurema, deu boa noite às raízes, fogo no mato, subindo fumaça, aprendendo com o catimbó a adaptar o culto aos seus antepassados, que sem folha não tem nada, como se fazia nessa terra antes da invasão, ao modo tupinambá.

E lá seguia Xica: temida, da cidade alta à cidade baixa com fama de bruxa, feiticeira, sacerdotisa dos desencarnados e das práticas “não cristãs”, envolta pela espiritualidade dos seus ancestrais, como se fazia na sua terra, ao modo quimbanda.

Quando a intolerância bradou contra ela em praça pública a ordenou renegar sua religiosidade, abandonar sua fé para oprimir sua existência, Xica disse: “NÃO”. Se recusou a renunciar sua ancestralidade, sua identidade.

Quando o ódio vociferou contra ela em praça pública a ordenou se vestir, andar e falar “como se deve”, a atender pelo nome de Francisco, para oprimir sua existência, Xica disse: “NÃO”. Se recusou a renunciar sua natureza, sua identidade.

Mais uma vez, pagaria alto pela transgressão. Corpo desobediente.

O ultraje foi revidado com uma denúncia à Santa Inquisição em Salvador, pois, pelo comportamento considerado indecente e figura dissidente, Xica Manicongo seria uma criminosa de lesa-majestade aos olhos das Ordenações Manuelinas.

Assim, Francisco Manicongo foi fichado pelo Santo Ofício como membro de quadrilha de feiticeiros quimbandas sodomitas. Nas leis dos cidadãos de bem, um pecador a ser martirizado num auto de fé, sacrificável à fogueira publicamente. Destino dos não recomendados à sociedade.

Diante de tal encruza, finalmente, Xica disse sim. Se viu obrigada a aceitar a crueldade da prisão interior oferecida como acordo. Contudo, eles NÃO iriam vencer.

Então, na luz do dia, lá se via Xica travestida daquilo que não era; enrustida no armário de Francisco. E quando o véu da noite cobria a cidade, lá se ia Xica rodando sua saia pelas brechas das ruas, esquinas, estradas e matos, encantada e zombando.

Até que Xica Manicongo pombogirou.

E lá se foi Xica: girando com outras entidades andrógenas, mulher de quebrar quebranto, correndo gira livremente pelas pistas e encruzilhadas. A herança do seu afrontamento rompe o ar, ecoando nas gargalhadas de Mavambos, Navalhas, Cabarés, Padilhas, Farrapos, Mulambos…

E lá se ouve Xica: reexistindo na oralidade do Pajubá que serpenteia nas línguas de suas sereias, na guerra pela sobrevivência contra as sistemáticas inquisições, como se faz nessa terra campeã de transfeminicídio no mundo.

E lá se vê Xica: combativa, subindo e descendo as ladeiras do Tuiuti, pajubando pelas comunidades, favelas, quebradas, universidades, palcos e palanques, em cada uma que se levanta contra a marginalização social e cultural forçada e reconhece a potência revolucionária de sua existência. Inspirada, reverenciando sua transcestralidade e zelando pela história das que pavimentaram esse caminho com suas dores e glórias na luta por visibilidade, respeito e direitos.

E aqui está Xica: Manicongo, senhora do Congo, rainha da nossa congada. Coroada e consagrada rainha do Traviarcado. Ela queras ruas, as casas, as telas, os livros, as salas de aula, os diplomas, os consultórios, as forças armadas, os altares, os parlamentos, as políticas, as presidências… A vida, o amor. Ela NÃO vai recuar. Eles NÃO vão vencer. Nada há de ter sido em vão.

O futuro é travesti.
Que assim seja!
Que assim se faça!

Jack Vasconcelos
Carnavalesco

Agradeço a todos, todas e todes pesquisadores e escritores que se dedicaram ao estudo e lutaram/lutam para o não apagamento da memória de Xica Manicongo.

Minha gratidão dileta e eterna ao Mestre Juremeiro Fabio d’Cigano pelo acolhimento, a Mestra Juremeira e Quimbandeira Dona Maria da Praia e ao Cigano Juremeiro Pierre Santiago pela orientação, aula espiritual e por terem sido pontes para que este enredo pudesse ter sido alimentado por informações que eu não conseguiria encontrar em nenhum escrito “dos homens” e ditado e guiado por quem viveu e fez a história.

Por mais que, e se algum dia, eu tenha a dádiva de me encantar e viva por milênios, jamais conseguirei pagar por tanta honraria. Muito obrigado.

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